Poucas vezes a metáfora de um filme me pegou tanto quanto em A Substância, de Coralie Fargeat.
Fui ao cinema esperando um filme de terror. Antes de sair de casa, fui ver o nome do filme pra abrir o trailer, mas ando com a memória ruim, abri a aba e me esqueci.
Que bom! O filme me pegou totalmente de surpresa, eu fui sem nem saber do que se tratava, e acho que isso fez toda a diferença.
No filme, Elisabeth Sparkle (Demi Moore) é uma mulher na casa dos 50 anos que já foi uma atriz de sucesso, mas enfrenta os obstáculos que uma mulher da sua faixa etária encontra na realidade cruel do show business.
É tida como velha, ultrapassada, como se a sua vida já tivesse acabado e tudo de bom sobre ela tivesse ficado pra trás junto com a sua juventude. Após um acidente de carro, Elisabeth acaba conhecendo a experiência com “A Substância”.
A Substância e a armadilha da juventude eterna
A experiência com a substância acontece de uma forma meio escusa, não fica bem explicado de onde as pessoas são ou qual o objetivo.
Elas apenas disponibilizam em um depósito abandonado uma caixa com o material necessário. A ideia é “Você vai injetar uma vez, ativar todos os dias, e ter uma versão muito melhor de você, mais jovem e mais bonita”.
Porém, existe uma regra: a matriz e a nova versão precisam trocar de lugar a cada sete dias, obrigatoriamente, se lembrando sempre de que são a mesma pessoa.
Elisabeth realiza a experiência sem questionar, e logo sai de dentro dela (em uma cena perturbadora) uma versão jovem, na casa dos 20 anos, apta a conquistar de o seu emprego perdido na televisão.
Para essa nova versão, Elisabeth Sparkle dá o nome “Sue”. É interessante dizer que o nome “Sue” tem significado ligado a pureza e a beleza dos lírios, uma representação perfeita para a ideia de juventude.
Elisabeth x Sue
Sue (Margaret Qualley) parece perfeita para recuperar a vida que Elisabeth deixou pra trás. Porém, sete dias depois, ela precisa trocar de lugar com o seu “eu” original, o que começa a parecer frustrante.
A vida de Elisabeth é bem menos interessante: ela não se sente observada ao andar pelas ruas, os homens a tratam grosseiramente, ela já não recebe delicadezas e se sente sozinha, enquanto Sue atrai todos os olhares e gentilezas e está rodeada dos novos amigos que orbitam o seu sucesso como nova apresentadora de TV.
Com esse conflito, em um dos seus “turnos”, Sue está envolvida com um rapaz e começa a passar mal. É hora de trocar.
Mas ela não quer interromper o momento da sua nova vida, então protela a troca, sugando um pouco mais de energia de Elisabeth. Como consequência, Elisabeth começa a sofrer alterações físicas bizarras.
A crueldade do etarismo e a pressão estética sobre as mulheres
Vou pontuar o aspecto psicológico que eu observei no que resumi até aí. Primeiramente, Elisabeth Sparkle é interpretada pela Demi Moore! É a Demi Moore!!!
Uma das mulheres mais estonteantes que todo mundo já viu no cinema. Pra mim a ironia apontando a crueldade que as mulheres enfrentam, não só no show business, parte daí.
Para reforçar, todos os homens que a criticam ou não são gentis com ela no filme, incluindo o chefe asqueroso, são… FEIOS.
E, no caso do chefe, mais velho do que ela! Ainda assim, a crítica masculina a fere a ponto de confiar em um procedimento desconhecido, que dá todos os indícios de ser pouco confiável, com o seu próprio corpo.
O filme retrata, ao meu ver, de forma muito clara o privilégio masculino, sem qualquer cobrança estética, quando um homem muito mais velho, de aparência duvidosa pra dizer o mínimo, se sente confortável em repugnar a aparencia de uma mulher lindíssima, diminuindo ela pela idade, querendo substituí-la por uma versão mais nova.
Nessa cena, que acontece logo no início, são reproduzidos os tradicionais estereótipos machistas… como “os óvulos de uma mulher começam a diminuir depois dos 25” e toda a pressão etarista que as mulheres sofrem.
Aliás, o presente que Elisabeth ganha do chefe após ser dispensada, para “se distrair”, é um livro de culinária. Não apenas machista, mas como se a intenção fosse também designar a ela um “passatempo de vovó”!
A distorção da autoimagem e a busca desenfreada pela perfeição
Quanto mais a Sue fica “no poder”, mais difícil é pra Elisabeth suportar a si. Essa foi a metáfora que eu mais vesti a carapuça, levando um pouco pro pessoal.
Ela começa a ser retratada num dedo envelhecido… depois uma perna… quanto mais tempo ela passa sendo “jovem e perfeita”, mais repugnante ela se torna na sua versão “matriz”.
Quão fácil é se identificar com isso?
Vou usar um exemplo pessoal. Baixei um aplicativo que tem funções como “aplicar extensões no cabelo” e “auto maquiagem”. Testei em tantas fotos, que percebi que as minhas fotos originais, sem esses efeitos, começaram a me parecer impraticáveis. Fotos das quais antes eu gostava!
Aquele looping normal de muitas mulheres, tirar dez fotos pra gostar de duas ou três, mas gostava, e de repente, o meu rosto original, sem nenhum efeito, parecia completamente impublicável.
Claro que meu exemplo é simples, pequeno… eu acho que o filme se refere a mulheres que se submetem a procedimentos estéticos, cada vez mais buscando se ausentar do seu verdadeiro eu, da sua “matriz”, tentando serem mais jovens, mais bonitas, e isso vai gerando um vício e um dano emocional tão profundo, que faz elas se odiarem cada vez mais e desenvolverem distorção de imagem.
Esse dano emocional pode gerar problemas psicológicos graves, como a depressão… e isso é brilhantemente retratado no filme de forma sutil, quando Elisabeth passa a comer compulsivamente durante os seus sete dias, sem sair de casa, sem sair da frente da tv, sem parar de reclamar, rodeada por uma casa imunda e insalubre.
Como já era de se esperar, a matriz e a nova versão começam a conflitar. Elisabeth começa a odiar Sue e sentir ciúmes de seu sucesso, enquanto Sue começa a sugar cada vez mais a vitalidade de Elizabeth para ficar mais tempo “em vida”.
Com isso, a versão original de Elisabeth é completamente destruída e ela passa a não ser mais nem sombra de quem era no início do filme. Ela não sabe a hora de parar, e aniquila completamente a si mesma na busca pela perfeição.
Um final chocante e a crítica à cultura da aparência
Dizer o que surge a partir daí é contar o final do filme em detalhes, e apesar do meu review ter bastante spoilers, eu acho que o final é preciso VER pra crer.
É de chocar todo mundo… A gente não sabe se ri, se fica espantado, se está mesmo entendendo o que está acontecendo. Só quero fazer um comentário sobre: a cena do palco, a la “Carrie” do Stephen King, foi pra mim o ponto alto da crítica contida nesse filme.
O sangue jorrando em toda a plateia cruel, que já se prepara pra odiar também Sue, demonstra que o sofrimento que é a representação desse sangue está nas mãos de todos ali.
E a cena acontece enquanto o filme repassa falas machistas abomináveis que foram ditas ao longo do filme, como “se ela tivesse esses peitos no lugar daquele nariz…”. A imagem de Sue nas paredes enquanto o “monstro” anda pelo corredor… simbólica e triste.
Até onde vale a pena ir?
O filme é uma crítica bem construída, com altas doses de má impressão e sensação de angústia psicológica. As cenas são feitas pra causar horror. Aliás, o banheiro onde acontecem as trocas é de dar arrepios.
Vale muito a pena e não deixa de ser, na minha opinião, uma espécie de terror psicológico.
Até que ponto vale a pena se submeter a algo invasivo, doloroso e destrutivo, confiando a isso o nosso próprio corpo? Em nome de quê?
A Substância é um filme que todos deveriam assistir, mas que talvez só as mulheres entendam.
E você, já assistiu “A Substância”? Me conta aí nos comentários o que achou!
Autora do livros “Antes de Dizer Adeus” e “No Silêncio dos Seus Olhos”, Sté está, atualmente cursando a faculdade de jornalismo. É uma Paulista que ama livros, animais, viagens e é fã de dias frios e chuvosos.